O Brasil sai de mais um Carnaval com memórias, histórias e a ressaca de quem aprecia alguns excessos em tempos de folia. Mas desta vez foi muito diferente, porque o cinema nacional foi totalmente oscarizado no domingo da nossa mais famosa festa. Não acredito em acasos, mas que eles existem, sim, existem! E não se trata de afirmar ingenuamente que “Ainda Estou Aqui” chegou onde chegou simplesmente graças à sua qualidade, tampouco é o caso de recorrer ao pragmatismo preguiçoso de quem acredita que é tudo uma questão de tempo e lobby. Nada disso. Penso que o acaso se manifesta quando há ousadia, trabalho e desejo de contar boas histórias — no cinema ou em qualquer parte. Este tipo de inocência me apetece cultivar. 4gh1h
Toda vez que a cultura de um país olha para sua própria história, o resultado costuma ser estupendo. Com o audiovisual não é diferente. Pense na inquietude do Cinema Novo no Brasil, na crueza do Neorrealismo italiano ou na irreverência da Nouvelle Vague sa. Insolentes, esses e tantos outros movimentos ajudaram a levar a arte e a sociedade a outros patamares. Sabe por quê? Porque desejaram não ser aquilo que já estava dado. Não queimaram suas películas com falácia. Refutaram as referências de indústrias e métodos que, embora muito competentes, não dialogavam com o sentimento que suas comunidades compartilhavam. A tensão e o estranhamento do cotidiano precisavam ser representados. Foi isso que eles fizeram. Foi isso também que o sucesso coreano “Parasita” fez.
O risco de contar histórias que não são as suas é sempre muito alto. Não é raro que tudo se transforme em um grande pastiche e, ao final, autores e elencos entreguem ao mundo uma mistura na qual todas as identidades são perdidas. Ou seja, o público já não compreende as origens de quem produziu o conteúdo. Os donos da história não se sentem representados e, muitas vezes, ficam ofendidos. Essa bagunça já foi um expediente usado à exaustão nas nossas novelas — e ainda é; embora, hoje, em menor grau. (Importante deixar claro que não se questiona aqui o êxito e a excelência técnica das nossas novelas, um patrimônio que exalta o Brasil e do qual devemos nos orgulhar.)
Mas vamos deixar nossas novelas em paz. Afinal, temos um caso mais recente e mais famoso para registrar. “Emilia Pérez”, indicado a nada menos que 13 categorias no Oscar — ganhou em duas — foi marcado por polêmicas. A trama se a no México e narra a história de uma traficante em transição de gênero. Só que o produto é francês. A protagonista, Karla Sofía Gascón, é espanhola. O elenco dá pouco espaço a latinos e, segundo muitos mexicanos, reforça estereótipos e trata o flagelo da criminalidade e da violência do tráfico com falta de respeito. O resultado é mais triste do que feliz, ainda mais com o resgate de antigas postagens preconceituosas de Gascón como a cereja de um bolo indigesto.
Essa história muitos de nós conhecemos. Menos conhecida — mas também bastante noticiada — é uma das respostas dadas ao filme por pessoas envolvidas com o cinema mexicano. O curta-metragem “Johanne Sacrebleu” faz uma “homenagem” aos produtores de “Emilia Pérez” destilando clichês do país europeu. No IMDB, o filme está assim descrito: “A vida real dos ses em um musical feito por mexicanos. Conta a história épica de baguetes, croissants, queijo fedorento e as dificuldades de não tomar banho diário.” É provável que a obra não trará prêmios. Mas, sem dúvida, já foi e ainda será motivo para muitos brindes com tequila. Vale a pena assistir.
No mundo, não é de hoje que tentamos ser aquilo que não somos. Uns mais, outros nem tanto. Parecer mais rico, parecer mais feliz, parecer mais magro, parecer mais inteligente. Pessoas e marcas sabem que a imagem projetada tem um poder muito forte sobre a imagem percebida. Seja de forma intuitiva, seja por meio de sofisticadas pesquisas, é assim que as cenas e os atores se repetem no mercado, com tratamentos e efeitos de seu tempo. As redes sociais só fizeram democratizar essa ciranda. Mas, apesar de o conselho já estar bastante desgastado, vale lembrar que a dicotomia entre discurso e prática pode custar caro. Não que vá dar em falência ou morte, mas pode render uma bela de uma ressaca.
Certa vez, Carmen Miranda, lenda luso-brasileira, regressara ao Brasil e sofrera muitas críticas porque teria se distanciado da nossa cultura — o sucesso dela nos Estados Unidos era estrondoso. Uma das respostas mais conhecidas veio com a inesquecível canção “Disseram Que Voltei Americanizada” (composição de Luiz Peixoto e Vicente Paiva), na qual ela negava as acusações e garantia: “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas/ Eu sou do camarão, ensopadinho com chuchu”. Enquanto houver México, haverá exemplos de orgulho, ousadia e honradez. E enquanto existir vigilância, lembre-se de um famoso autor francês que disse que você fica para sempre responsável por aquilo que cativas.
Fim.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com
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